AINDA SOBRE A RESOLUÇÃO DA ASSEMBLEIA DA REPÚBLICA 181/2021

 

AINDA SOBRE A RESOLUÇÃO DA ASSEMBLEIA DA REPÚBLICA 181/2021

 

Exerço obstetrícia há mais de 30 anos e sempre me esforcei por explicar à gravida, ao casal – porque é imprudente retirar o parceiro da equação -, as razões dos procedimentos tomados. Num ambiente de confiança mútua, de relação médico-doente adequada e equilibrada, dificilmente se desencadeará algo parecido com “violência obstétrica”, ou seja, uma situação em que, de alguma forma, a grávida ou casal tenham sentido ter sido exercida violência física ou psicológica sobre eles. O que não impede que não tenham passado por situações que não idealizaram, que considerem violentas, passiveis de ocorrer no decurso de um parto e, na maioria dos casos, totalmente imprevisíveis. O que também tento fazer é rever com a grávida/casal os acontecimentos ocorridos durante o trabalho de parto/parto tentando explicar o que aconteceu e o porquê das decisões tomadas.

Não são conhecidos em Portugal números reais sobre a maioria dos indicadores obstétricos. Conhecem-se números quanto a partos, cesarianas e mortalidade materna e perinatal, mas nada se sabe quanto a outros indicadores, sendo a episiotomia um deles. Para melhor clareza esclareço que episiotomia é o corte realizado no períneo da mulher no momento da expulsão do feto, pelo assistente ao parto (médico/a, enfermeiro/a) e que tem por objetivo minimizar o desenvolvimento de lacerações que, em última análise, podem condicionar disfunções urinárias e da defecação. Não sendo conhecidos estes números, qualquer opinião sobre eles encontra-se no domínio da ficção, da opinião não fundamentada, do “achismo”, algo que não deve estar na base da decisão de uma Assembleia da República que representa todos os portugueses e que se pretende séria. E ao fazê-lo, a mesma Assembleia da República denota uma falta de respeito pelos profissionais em saúde materna, que tomam decisões baseados em evidência científica e cujo objetivo primordial e último, e pelo qual tanto se esforçam, é o de garantir mães e recém-nascidos saudáveis.

Penso que este ambiente de desconfiança que vivemos entre a grávida e quem pratica a obstetrícia se deve à falta de conhecimento pelo casal do momento pelo qual vão passar. Num mundo em que é fácil de obter uma qualquer informação, se esta não for adequada, quer na qualidade quer na quantidade, é muito fácil gerar ansiedade num momento de tão elevada susceptibilidade e fragilidade da grávida/casal.  E esta ansiedade pode ser aproveitada por razões outras que não o interesse último da saúde da mulher e do seu filho. Daí a importância de promover a preparação para o parto da grávida/casal, administrada por profissionais idóneos. Daí a importância de existirem os planos de parto, que não são mais do que uma base de discussão entre a grávida/casal e o profissional de saúde permitindo que a grávida/casal exponha de forma clara aquilo que pretende durante o trabalho de parto e parto e seja esclarecida quanto a perspectivas fantasistas ou irreais. E a par, a existência de consentimentos informados sobre os diversos aspectos do trabalho e parto – a analgesia, a liberdade de movimentos, a ingestão de alimentos, a existência de um acesso venoso, a administração da ocitocina, a monitorização fetal, a episiotomia, a reparação de lacerações do períneo, o parto instrumentado, a cesariana – e das complicações mais frequentes –  o sofrimento fetal agudo, a hemorragia pós parto – que permitam à grávida/casal serem esclarecidos pelo prestador de cuidados de saúde obstétricos e consciencializarem-se dos potenciais riscos do momento que vão atravessar. E, caso não estejam de acordo quanto às condições, que procurem um outro profissional/local que atenda os seus desejos.

Para a grande maioria dos que se dedicam a esta especialidade, o termo “violência obstétrica” é desadequado, ofensivo e lamentável, pois em todos há o compromisso assumido de zelar pelo bem-estar da grávida e do feto, baseando a sua prática clínica na evidência científica disponível. Como a Ordem dos Médicos de Espanha recentemente afirmou a propósito do mesmo tema, a utilização deste termo, alheado da realidade assistencial, apenas contribui para desgastar a necessária confiança entre o clínico e a grávida/casal, crucial na fase que estão a viver.

 

Nuno Clode

Obstetra/ Presidente da Sociedade Portuguesa de Obstetrícia e Medicina Materno-Fetal